Querem
uma aula de tolerância e civilidade? Então leiam a entrevista que o
advogado Josph Weiler, que defendeu o direito das escolas italianas de
exibir o crucifixo, concedeu em setembro do ano passado ao jornal
português “Público”. Ele é judeu ortodoxo. A entrevista é longa, mas se
trata de um dos mais brilhantes exercícios de tolerância que já li. Uma
pena o doutor Wadih Damous, presidente da OAB-RJ, não ter sido
contratado para o outro lado. Imaginem alguém que defendesse que até o
patrimônio cultural fosse “limpado” da herança cristã. Antes da íntegra
da entrevista, destaco alguns trechos em azul para despertar a
curiosidade.
Sobre as leis francesas, que proíbem a exposição de qualquer símbolo religiosa:
“Sim… As crianças podem ir para a escola e usar uma t-shirt com uma fotografia de Che Guevara, podem ter escrito Love and Peace,
podem ter um insulto a George Bush, qualquer posição política ou
ecológica, podem levar o triângulo cor-de-rosa pelos direitos dos gays. A única coisa que não podem levar é a cruz, a estrela de David e o crescente.”
Sobre liberdade religiosa
“Não podemos permitir que a liberdade de [ter ou não] religião
ponha em causa a liberdade religiosa. Temos que descobrir a via média. E
essa é dizer não, se alguém quiser forçar outro a beijar ou a
genuflectir perante a cruz. Mas, se houver uma cruz na parede, direi aos
meus filhos que vivemos num país cristão. Somos acolhidos, não somos
discriminados. A Dinamarca tem uma cruz na bandeira, a Inglaterra e a
Grécia igual. Vamos pedir que, por causa da liberdade religiosa, tirem a
cruz das bandeiras? Absurdo!…”
Sobre a crisfofobia
“As pessoas falam de liberdade religiosa, mas, de facto, muitas
vezes é cristofobia. Não é neutralidade, é antes porque não gostam do
cristianismo e da Igreja. Sei por quê: a Igreja tem uma história
complicada…”
A cruz e a tolerância
Na Grã-Bretanha, o chefe de Estado é o chefe da Igreja, há uma
Igreja de Estado, o hino nacional é uma oração. Quem diria que o país
não é tolerante? É o país de eleição para muitos muçulmanos emigrantes. O
facto de haver uma identidade religiosa e uma prática de
não-discriminação é um sinal de uma sociedade pluralista e tolerante.
De certa maneira, a Grã-Bretanha com a cruz é mais pluralista e
tolerante do que a França, sem a cruz. Porque na Grã-Bretanha, apesar de
afirmar a identidade religiosa do Estado, é não discriminatória em
todos os aspectos da vida. Financia escolas anglicanas, mas também
católicas, judias, muçulmanas e seculares. Os países laicos financiam
escolas seculares, mas não escolas religiosas. Quem é mais tolerante e
pluralista?
*
Leiam a íntegra da entrevista.
Judeu
convicto, especialista em Direito Constitucional, Joseph Weiler defendeu
perante o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos o direito de a Itália
ter crucifixos nas paredes das escolas e o direito da França de não os
ter. E diz que esse pluralismo europeu é que é bom. Ganhou por 15-2.
Tinha
acabado cinco horas de aulas, pediu apenas um prato de batatas fritas,
que foi petiscando enquanto conversava. Joseph Weiler, nascido em 1951, é
um judeu convicto. O que não o impediu de defender a possibilidade de
haver (ou não) crucifixos nas paredes das escolas. Virou a opinião do
tribunal, dos anteriores 17 a favor de retirar os símbolos religiosos da
parede, para uns claríssimos 15 contra. Apenas dois juízes mantiveram a
decisão anterior. E adverte: nem a Itália nem a França são neutros em
matéria religiosa. Mas ambos devem educar para o pluralismo.
Especialista
em Direito Constitucional europeu, Weiler é professor da Católica
Global School of Law, da Universidade Católica Portuguesa, e, por isso,
vem a Portugal várias vezes por ano.
Tem publicado Uma Europa Cristã
(ed. Princípia). E publicará, até final do ano, um livro sobre o
processo que condenou Jesus à morte. Nele defende que “o sentido de
justiça, na civilização ocidental, provém do julgamento de Jesus”,
explica ao Segundo Caderno de Público. O Papa disse, no seu último
livro, que os judeus não foram responsáveis pela morte de Jesus. Weiler,
judeu, irá dizer o contrário. E explicar por quê.
Público - [O sr.]Defendeu o crucifixo nas salas de aula italianas…
Jospeh Weiler - Tive uma vitória famosa, 15-2…
Defendeu essa posição como jurista ou como judeu e crente, em solidariedade com outra fé?
Depois da decisão, recebi centenas de e-mails. Muitos
diziam “obrigado por defender o crucifixo”. Muitos outros, vindos da
comunidade judaica, perguntavam: “Como pode o filho de um rabi defender o
crucifixo?” A todos, aos que me felicitavam ou que me condenavam,
respondi o mesmo: “Não defendi o crucifixo. Defendi o direito da Itália a
ser Itália e o direito de França, onde a cruz é proibida, a ser a
França.”
Ou seja, a possibilidade de leis diferentes…
Acredito no valor do pluralismo nas relações entre a Igreja e o
Estado, que existe na Europa, onde temos vários modelos: o modelo
francês, o britânico, o alemão, etc. Isso é parte da força da
civilização europeia. A decisão da câmara, por 17 contra zero, dizendo
que a Itália estava a violar a Convenção Europeia por ter uma cruz nas
salas de aula, parecia-me tão drástica que forçaria todos a ser como
França. Isso parecia-me completamente contra o pluralismo e tolerância
que existe na Europa.
E escreveu o editorial no European Journal of International Law…
Sim. Dizendo que era uma decisão terrível. Como podia o tribunal decidir
que a tradição na Grã-Bretanha, na Alemanha, em Malta, na Grécia ou na
Dinamarca era contra os direitos humanos e a Convenção Europeia de
Direitos Humanos? Perguntaram-me se queria ir ao tribunal. Concordei,
com uma condição: seria pro bono, não queria que dissessem:
“Olha o judeu, por dinheiro até é capaz de defender a cruz”. [ri] Decidi
fazê-lo, porque acreditava que era a atitude certa.
Não foi só a Itália a defender essa posição.
Oito estados intervieram, convidando-me. A Itália defendeu a própria
posição. O facto de ser judeu é irrelevante. Sou constitucionalista
praticante e tal parecia-me errado, no âmbito da Convenção Europeia de
Direitos Humanos. Há duas coisas mais importantes, que me parecem
erradas, no âmbito da Convenção e que me ajudaram a reagir: estou
verdadeiramente cansado do argumento, repetido à exaustão, de que o
Estado é neutro, em matéria religiosa, quando não permite o crucifixo na
parede.
E não é assim?
Tentei convencer a câmara de que esse é um argumento errado. Se o Estado
quer que a cruz esteja na parede, não é neutro. De certa maneira, é
tomar uma posição sobre a importância do cristianismo na identidade do
país. Ou seja, há algo na identidade do país que se quer valorizar com a
cruz na parede e essa não é uma posição neutral.
Mas quando o Estado, como em França, proíbe a cruz, não está a ser
neutro. Porque não há uma parede nua, vazia. Qualquer coisa pode ser
colocada na parede: se amanhã houver uma maioria comunista, podem dizer
que em todas as escolas tem que haver uma foice e um martelo.
Podem?
Sim, e não há nada na Constituição que o impeça: pode ter uma fotografia
de Karl Marx na parede, pode ter um sinal de paz, uma posição
ecológica… De facto, em todas as escolas primárias de França, está
escrito: Liberté, egalité, fraternité - o slogan mobilizador da Revolução Francesa.
Eu gosto disso, mas não é neutral. Se for monárquico, não é neutro,
seguramente. Qualquer símbolo é permitido nas paredes: Karl Marx e
Groucho Marx; o sinal de paz, a foice e o martelo, o símbolo “nuclear
não”. Há apenas um que não é permitido: a cruz, um símbolo religioso.
Como é que isso é neutro?
Nem a estrela de David nem o crescente islâmico…
Sim… As crianças podem ir para a escola e usar uma t-shirt com uma fotografia de Che Guevara, podem ter escrito Love and Peace,
podem ter um insulto a George Bush, qualquer posição política ou
ecológica, podem levar o triângulo cor-de-rosa pelos direitos dos gays. A única coisa que não podem levar é a cruz, a estrela de David e o crescente.
Nem podem vestir o chador…
Não… Isso não é ser neutro, é dar uma mensagem clara às crianças: tudo é permitido, excepto um símbolo religioso.
Na minha arguição, não disse que a França viola a Convenção Europeia por
ter essa regra. Na tradição europeia, o Estado laico é uma opção
respeitável. Mas não pretendam que seja neutro. Ele diz que tudo é
permitido, excepto a cruz ou a estrela de David, e está a dar uma
mensagem sobre religião.
No sistema italiano, apesar da cruz, há um dever educacional de
respeitar os ateus e outras religiões. No sistema francês, onde se
proíbe a cruz nas paredes mas se permite tudo o resto, há o dever de
explicar aos estudantes que, apesar de se permitirem todos os símbolos
excepto os religiosos, se deve ensinar o respeito pelos crentes. Nenhum
dos sistemas é neutro. Em ambos está implícita uma espécie de
preconceito. E em ambos é tarefa do sistema educativo contrabalançar as
coisas para que a escola não ensine o preconceito mas a tolerância.
Esse era o seu primeiro argumento…
O segundo era: acreditamos na autodeterminação como direito fundamental.
Acreditamos no direito de os britânicos serem britânicos e de os
irlandeses serem irlandeses. A razão por que temos a Irlanda
independente da Grã-Bretanha, em 1921, é porque os irlandeses são
diferentes dos ingleses.
Como podemos imaginar a identidade irlandesa sem o catolicismo? No
preâmbulo da Constituição irlandesa, diz: “Acreditamos que o Divino
Senhor Jesus Cristo é a fonte de todo o dever, justiça e verdade.” Isto é
o que são os irlandeses. O que vamos dizer-lhes? Não permitimos um
sentido de nacionalidade que tem um tal conteúdo religioso?
O que é bonito na Europa, mesmo apesar da Constituição irlandesa, é que
não há discriminação por causa da religião. Um judeu pode ser
primeiro-ministro. Como um muçulmano ou um ateu. E aceitará que é
impossível falar da identidade irlandesa sem o catolicismo e a cruz.
Para o bem e o mal.
Mas é possível também que as sociedades mudem?
Mas compete às sociedades mudar. Na minha arguição - que é
curta, eu só tinha 20 minutos -, dizia que, se um dia os ingleses
decidirem deixar de ter o Anglicanismo como religião oficial, podem
fazê-lo. Não é um país religioso, a maior parte dos britânicos não é
religiosa. Mas faz parte da sua identidade.
Os suecos mudaram a Constituição e decidiram que a Igreja Luterana
deixaria de ser a religião estabelecida no país. Mas foram eles que
definiram a sua identidade sueca, não foi Estrasburgo. Não compete a
Estrasburgo dizer que eles não podem ter uma cruz na bandeira. Eles
deixaram de ter a Igreja oficial mas mantiveram a obrigação de o rei ser
um luterano. O símbolo do Estado tem que ser um luterano.
Na
sua arguição, afirmou também que este é um conflito entre o direito
individual e o Estado. No caso italiano, tratou-se precisamente de uma
mãe ofendida pela presença da cruz…
Em muitos casos, temos um conflito entre diferentes direitos
fundamentais. O hino nacional inglês é uma oração: “God Save the Queen”,
dá-lhe vitórias e glórias. Na escola, canta-se o hino nacional. E se
houver um estudante que diz “sou ateu, não creio em Deus e não quero
cantar uma oração”? O direito individual estará comprometido se a escola
forçar esse estudante a cantar o hino nacional e se o ameaçar de
expulsão. Ninguém pode ser forçado a fazer um acto religioso, uma
oração, mesmo quando não acredita…
Pode ser um republicano…
Claro, não tem que dizer “Deus salve a rainha”. Isso eu aceito.
Mas não aceito que esse estudante ou a sua mãe digam que mais ninguém
deve cantar o hino. É um compromisso simpático: ele tem o direito de
ficar em silêncio, os outros o direito de cantar. E todos têm direito à
liberdade religiosa.
A minha mãe cresceu no Congo Belga. A única escola para brancos era um
convento católico. Os pais dela fizeram um acordo com as freiras: cada
vez que elas dissessem Jesus, a minha mãe diria Moisés. É um bom
compromisso.
Não podemos permitir que a liberdade de [ter ou não] religião ponha em
causa a liberdade religiosa. Temos que descobrir a via média. E essa é
dizer não, se alguém quiser forçar outro a beijar ou a genuflectir
perante a cruz. Mas, se houver uma cruz na parede, direi aos meus filhos
que vivemos num país cristão. Somos acolhidos, não somos discriminados.
A Dinamarca tem uma cruz na bandeira, a Inglaterra e a Grécia igual.
Vamos pedir que, por causa da liberdade religiosa, tirem a cruz das
bandeiras? Absurdo!…
É por causa disso que fala de argumentos iliberais?
Sim, porque o ponto de vista liberal é, muitas vezes, iliberal. As
pessoas falam de liberdade religiosa, mas, de facto, muitas vezes é
cristofobia. Não é neutralidade, é antes porque não gostam do
cristianismo e da Igreja. Sei por quê: a Igreja tem uma história
complicada…
É também por causa disso?
Claro. Compreendo, mas não devemos mascarar os factos. Vivemos numa
sociedade em que algumas pessoas são religiosas, outras não. A questão é
como vivemos juntos. Não podemos pretender que, se negarmos todas as
religiões no espaço público, isso é neutro. É o que faz a França, mas
não é o único modo de o fazer.
Então deveria ser possível ter uma cruz na sala de aula e educar os estudantes para o pluralismo?
Absolutamente. Seria uma lição de pluralismo. Porque diríamos: apesar de
ter uma cruz na sala de aula ou uma cruz nas bandeiras, permitimos que
um primeiro-ministro seja muçulmano ou judeu. A Itália teve
primeiros-ministros, generais e ministros judeus.
Na Grã-Bretanha, o chefe de Estado é o chefe da Igreja, há uma Igreja de
Estado, o hino nacional é uma oração. Quem diria que o país não é
tolerante? É o país de eleição para muitos muçulmanos emigrantes. O
facto de haver uma identidade religiosa e uma prática de
não-discriminação é um sinal de uma sociedade pluralista e tolerante.
De certa maneira, a Grã-Bretanha com a cruz é mais pluralista e
tolerante do que a França, sem a cruz. Porque na Grã-Bretanha, apesar de
afirmar a identidade religiosa do Estado, é não discriminatória em
todos os aspectos da vida. Financia escolas anglicanas, mas também
católicas, judias, muçulmanas e seculares. Os países laicos financiam
escolas seculares, mas não escolas religiosas. Quem é mais tolerante e
pluralista?
Evocou
a herança cristã da Europa, debatida a propósito da Constituição
Europeia. Se ela tivesse avançado, também devia referir a herança
judaica e muçulmana e a Revolução Francesa?
Deveria ter uma referência às raízes cristãs.
E judaicas e muçulmanas. Na Península Ibérica, por exemplo…
Na Europa, também há vegetarianos. É uma questão de grau. Temos que mencionar judeus, muçulmanos, baha”ís?
Eu também falaria de raízes judaicas e muçulmanas na cultura hispânica.
Mas, na Europa, a maior parte é cristã. Não falaria de raízes cristãs
no Egipto, mesmo havendo uma minoria cristã no país.
De um ponto de vista cultural, o cristianismo jogou um papel decisivo na
definição da civilização europeia. Para o bem e para o mal. As raízes
cristãs são também a Inquisição, judeus queimados. Quando eliminamos as
raízes cristãs, obliteramos também a memória das coisas más que a
cristandade fez.
Não há uma cidade na Europa sem uma catedral, onde o museu não esteja
cheio de pintura sacra. E os direitos humanos não derivam apenas da
Revolução Francesa, derivam da tradição judaico-cristã. Porque queremos
negar isso? O que se vê no Prado, no Museu Gulbenkian? Madonna con bambino… Isso não é a Europa? É um absurdo.
É possível coexistir a laicidade francesa e outros modelos?
Claro, essa é a riqueza da Europa. A Europa lidera pelo
exemplo, não pela força. Gostaríamos que por todo o mundo houvesse
democracias pluralistas e tolerantes. Que possibilidades há de persuadir
alguns países muçulmanos a abraçar o pluralismo se dissermos que a
religião deve ficar na esfera privada?
Podemos dizer à Arábia Saudita: podem tornar-se uma democracia,
reconhecer os direitos humanos e manter a vossa identidade muçulmana.
Reparem no que se passa na Grã-Bretanha, reparem no pluralismo europeu:
há um modelo francês, um britânico, um grego. Não somos apenas como os
franceses.
Tem
amigos entre os católicos conservadores, mas também defende os direitos
dos homossexuais, o que não é simpático para esses católicos…
Que posso eu fazer? Vieram ter comigo, quando começaram a falar
dos direitos dos homossexuais. A questão não era o casamento
homossexual, mas porque têm os homossexuais de ser discriminados? Não há
razão para isso.
Mesmo hoje, ensino os meus alunos como crente, mas digo-lhes: ninguém
deve perder o emprego por ser homossexual, a ninguém deve ser negado
alojamento por ser homossexual. Nos campos nazis, exterminaram os judeus
e os homossexuais. Não posso esquecer isso.
William Lane Craig em ação