segunda-feira, 6 de junho de 2011

A socialização do prestígio & a elitização sem precedentes

Vamos imaginar que a ideia de educação universal começou com a premissa de que todos deveriam ter acesso aos tesouros da humanidade. Vamos só imaginar, porque essa premissa é completamente falsa: a educação universal é um projeto do Estado-nação moderno, voltado para a competitividade e para a padronização; a educação universal é o paralelo pedagógico da Revolução Industrial.

Aquela premissa, porém, é o que nominalmente anima os burocratas e os educadores. O leitor pode chocar-se, pensar que não, que efetivamente anima, mas eu digo que não, e dou minhas razões. Fiz faculdade de Letras, e posso garantir que metade da faculdade foi dedicada à crítica do “ensino nas escolas”, da “gramática tradicional” e ao combate ao famoso “preconceito linguístico”. O que está por trás disso é o seguinte: não gostamos da gramática, não queremos ofender ninguém, então vamos dizer que a cultura de todo mundo é igualmente boa. Assim, você, que achava que ia para a escola para aprender a conversar com Fernando Pessoa, com Machado de Assis, agora não vai aprender nada, exceto que conversar com o Zé das Couves é tão bom quanto conversar com Fernando Pessoa e com Machado de Assis. E, se você achar que não, bom, você é elitista, você está eivado de preconceito linguístico.

Admirar Fernando Pessoa e Machado de Assis é difícil. É difícil, em primeiro lugar, porque muitos de seus textos são densos. Mensagem exige conhecimento da história portuguesa e intensidade reflexiva. Como explicar versos misteriosos como “Os deuses vendem quando dão"? Por que “o mito é o nada que é tudo”? Machado, em grande parte, exige uma certa maturidade, uma capacidade de olhar para si. Bentinho não é muito melhor nem muito pior do que a maioria de nós, e Dom Casmurro é muito mais do que o possível adultério de Capitu: seguindo uma dica de Antonio Fernando Borges, que, sem saber, guiou minha última leitura do romance, há um ano, percebi que o livro é proustiano antes de Proust, que é uma piada amarga a respeito da seletividade da memória, sem no entanto deixar de despertar compaixão no leitor. O único problema de dar Dom Casmurro para adolescentes é que esse tipo de livro só costuma ser devidamente apreciado quando já é tarde demais e já se sente alguma identificação com o narrador...

Mas, como bom brasileiro, divago. O que quero dizer é que o trabalho intelectual, como todo trabalho, dá preguiça, e olha eu sendo um clichê de brasileiro de novo. Junte à preguiça o fato de que gente de prestígio internacional, como Paulo Freire, vem sugerir que aquilo que você já tem é no mínimo tão bom quanto aquilo que você poderia ter e que os outros, aquela odiosa e opressora elite, já têm. Isso ativa a sua inveja. Então é possível ser tão bom quanto a elite sem fazer nada? Note-se que isso é uma concepção paranoica e equivocada da elite, mas que é comum. Já disse isto no passado: ao frequentar a UFRJ, que tem pessoas das mais diversas camadas sociais, descobri que os mais pobres julgam que os mais ricos leem Machado de Assis como quem folheia uma revista Caras, o que me dava ganas de dar aos meus interlocutores tapinhas condescendentes nas costas. Nossa elite econômica é quase tão inculta quanto seus empregados.

A ideia de educação foi assim contaminada pela preguiça e pela inveja. Nessa disputa de classes, porém, só há perdedores. Primeiro, porque é só um lado que está lutando. Hoje em dia, a elite já manda os filhos estudarem fora do Brasil, ou em escolas americanas e britânicas, ou em escolas que habilmente vão ignorando a correção política e que custam pequenas fortunas. Por outro lado, aqueles indivíduos que são efetivamente movidos pela curiosidade intelectual e que têm grande inteligência existem em todas as classes e progridem a despeito do meio, sempre. Talvez pudessem progredir mais, mas não é um professor dizendo que “nós vai” é apenas um registro sem prestígio por causa da dominação classista que vai impedi-los. Assim, o desejo de uma classe acadêmica e burocrática preguiçosa e invejosa de obter para si o prestígio que julga que uma certa elite possui acaba levando a uma elitização sem precedentes: se você não tiver a sorte de nascer pelo menos nos estratos superiores da classe média, ou de nascer dotado de inteligência e motivação, ou de preferência os dois, pode pelo menos agradecer ao burocrata que inventou a tal da aprovação automática.

Enquanto isso, podemos assistir ao distanciamento cada vez maior entre língua escrita e língua falada; ao uso cada vez mais amplo do pronome “que” sem qualquer preposição (“a pessoa que eu fui na palestra que eu fui”, isso é, “a pessoa com quem eu fui na palestra a que eu fui”), e a tudo aquilo que já faz do português culto um idioma verdadeiramente esotérico, ao menos no Brasil. O bom uso do idioma tornou-se uma qualidade tão rara que, na minha experiência, é usada até como critério de atratividade sexual por algumas mulheres.

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