quarta-feira, 2 de março de 2011

O Shabat
A.J.Heschel
A civilização tecnológica é a conquista do espaço pelo homem.
É um triunfo freqüentemente conseguido mediante o sacrifício de um dos ingredientes essenciais da existência: o tempo. Na civilização tecnológica, gastamos tempo para ganhar espaço e o acréscimo de nosso poder no mundo do espaço se converte no nosso objetivo principal. Mas ter mais não significa ser mais. O poder que alcançamos no mundo do espaço, detêm-se bruscamente ante os limites do tempo. Mas o tempo é o coração da existência.
Uma das nossas principais tarefas é, certamente, conseguir o controle do mundo do espaço. O perigo começa quando, ao adquirir este poder no reino do espaço, traímos toda a aspiração no reino do tempo. Existe um reino do tempo, cujo objetivo não é ter, mas ser; não é possuir, mas dar; não é dominar, mas repartir; não é submeter, mas concordar. A vida adquire um sentido errado quanto ao controle do espaço, a conquista das coisas do espaço, convertem-se em nossa única preocupação.
Nada é mais útil que o poder, nada é mais terrível. Sofremos constantemente a degradação pela pobreza, e agora somos ameaçados pelo poder. Há felicidade no amor ao trabalho; há aflição no amor ao lucro. Muitos corações são quebrados na fonte do lucro, pois ao submeter-se à escravidão das coisas, o homem converte-se em um vazo que se quebra na fonte.
A civilização tecnológica deriva principalmente do instinto humano de submeter e dirigir as forças da natureza. A manufatura de ferramentas, a  construção de casas e a navegação, tudo isso se desenvolve no mundo espacial do homem. A dedicação da mente humana nas coisas do espaço, afeta, até nossos dias, todas as atividades do homem. Também as religiões vêm-se dominadas, com freqüência, pela noção de que a divindade reside no espaço, em lugares determinados, como montanhas, bosques, árvores ou pedras, que são designados como lugares sagrados; a divindade está ligada a uma terra determinada, a santidade associada às coisas do espaço, deixando a questão fundamental: Aonde está Deus? A idéia de que Deus está presente no universo desperta um grande entusiasmo, ainda que tal idéia signifique Sua presença no espaço mas também no tempo, na natureza mas também na história, como se Ele fosse objeto e não espirito.
Inclusive n filosofia panteísta é uma religião do espaço: a concepção do Ser Supremo é a do espaço infinito. Deus sive natura possui como atributo a extensão ou o espaço, e no tempo; o tempo para Spinoza é simplesmente um acidente do movimento, uma maneira de pensar, e sua intenção de desenvolver uma filosofia more geométrico, a maneira da geometria, que é a ciência do espaço, denota as características de sua mentalidade espacial.
É difícil para a mente primitiva conceber uma idéia sem a ajuda da imaginação, e é no domínio do espaço onde a imaginação manifesta seu poder. A imagem dos deuses são visíveis, onde não há imagem não há deus. A reverência pelas imagens sagradas, pelos monumentos ou lugares sagrados, não somente é inerente à maioria das religiões, como também foi conservada pelo homem de todas as épocas, de todas as nações, piedosos, supersticiosos e inclusive anti-religiosos; todos continuam rendendo homenagens à estandartes e bandeiras, a santuários nacionais, a monumentos erguidos à reis e heróis. A profanação dos altares sagrados é considerada em qualquer lugar como um sacrilégio, e é tal a importância que o altar tem, que a idéia que representa é relegada ao esquecimento. O monumento converte-se em auxiliar para a amnésia, os meios deformam o fim. As coisas do espaço estão à mercê do homem, e se as considerarmos sagradas para serem profanadas, não o são para serem exploradas. Moldamos a imagem de Deus para perpetuar sua presença e reter o sagrado, ainda que um deus que possa ser moldado, um deus que possa ser confinado, não é mais que a sombra do homem.
Vivemos deslumbrados com o esplendor do espaço, pela grandiosidade das coisas do espaço. A “coisa” constitui uma categoria que pesa poderosamente sobre nossas mentes, tiranizando todos nossos pensamentos. Nossa imaginação tem que moldar todos os conceitos de sua imagem. Na nossa vida cotidiana, nos dedicamos principalmente ao que nossos sentidos nos transmitem, o que nossos olhos percebem, o que os nossos dedos tocam. A realidade é para nós o conjunto das coisas constituídas por substâncias que ocupam o espaço, e inclusive Deus é concebido como coisa pela maioria.
O resultado de tal submissão às coisas é a cegueira à toda realidade que não consiga identificar-se realmente com uma coisa. Isso fica evidente pela nossa compreensão do tempo, que por não ser concreto e substancial, torna-se como carente de realidade.
Sabemos, certamente, o que fazer com o espaço, mas não sabemos o que fazer com o tempo se não o subordinamos ao espaço. A maioria de nós trabalha com vontade pelas coisas do espaço, e padece, consequentemente, um temor ao tempo, profundamente enraizado, que nos deixa espantados quando vemo-nos obrigados a olhá-lo de frente. O tempo é para nós uma burla, um monstro arteiro e traidor, cujas faces queimam como forno cada instante de nossas vidas. Portanto, ao evita-lo, enfrentamo-nos com o tempo, refugiamo-nos das coisas do espaço. Depositamos no espaço as intenções que não somos capazes de realizar, e nossas pertinências convertem-se em símbolos de nossas repressões, em montes de frustrações. Mas os objetos do espaço não são incombustíveis, somente agregam combustível às chamas. Não será a alegria da possessão um antídoto contra o terror ao tempo, que cresce até o pânico ante a inevitável morte? Os objetos, ao magnificarem-se, tornam a felicidade falsa e, se constituem em uma ameaça a nossa vida, vivemos perseguidos mais do que amparados pelos Frankesteins dos objetos espaciais.
O homem não pode iludir-se com o problema do tempo. Quanto mais pensarmos nele, melhor compreenderemos que não é possível conquistar o tempo por meio do espaço: somente podemos dominar o tempo com o tempo.
O mais alto fim da vida espiritual não é acumular um mundo de informações, mas defrontar-se com os instantes sagrados. Numa experiência religiosa, por exemplo, não é uma coisa o que se impõe ao homem, mas sim uma presença espiritual. É o momento da visão interior o que mais se grava na alma e não o local onde esta aconteceu. Um instante de visão interior é um fato que nos transporta mais além dos confins do tempo. A decadência da vida espiritual começa quando deixamos de sentir a grandiosidade do inteiro no tempo.
Não é nossa intenção aqui menosprezar o mundo do espaço. Rebaixar o espaço e a benção dos objetos espaciais é menosprezar a obra da criação, a obra da qual Deus disse, ao completá-la, que “estava bem”. O mundo não pode ser visto exclusivamente sub specie temporis. O tempo e o espaço estão entrelaçados, e desdenhar qualquer  deles é cegar-se parcialmente. Somente advogamos contra a redenção incondicional do homem ao espaço, contra sua escravatura às coisas. Não devemos esquecer que não é o objeto o que dá sentido ao momento; é o momento o que outorga sentido às coisas.
A Bíblia ocupa-se mais do tempo que do espaço. Vê o mundo sobre a dimensão do tempo. Presta maior atenção às gerações, aos acontecimentos do que aos países, as coisas; concede maior importância à história do que à geografia. Para compreendermos os ensinamentos da Bíblia, devemos aceitar sua premissa de que o tempo tem para a vida um significado ao menos igual ao do espaço; que o tempo possui significado e soberania próprios.
Não existe equivalente para a palavra “coisa” no hebraico bíblico. A palavra davar, que posteriormente chegou a designar “coisa”, representa no hebraico bíblico as seguintes conotações: fala, palavra, mensagem, informação, notícia, demanda, conselho, petição, promessa, decisão, sentença, tema, relato, dito, expressão, negócio, ocupação, ação, boas ações, acontecimentos, modo, maneira, razão, causa; mas nunca “coisa”. Este é um indício de pobreza lingüistica, ou a indicação de uma visão acertada do mundo, que não confunde a realidade (voz derivada da palavra latina re, coisa) com o mundo dos objetos?
Um dos feitos mais importantes na história das religiões, foi a transformação das festividades agrícolas em comemorações de acontecimentos históricos. As festividades dos povos antigos estavam intimamente ligadas as estações da natureza. Celebravam o que acontecia nas respectivas estações da vida da natureza. Assim, o valor de um dia festivo era determinado pelas coisas que a natureza produzia ou deixava de produzir. A Páscoa judaica, originariamente uma festa de primavera, converteu-se na celebração do êxodo do Egito; a Festa das Semanas, antiga festividade da colheita do trigo (“jag há-katsir”, Êxodo, 23:16, 34:22), converteu-se na celebração do dia em que a Torah foi entregue no Sinai; a Festa das Cabanas, antiga festividade da vendimia (“jag há-asif”, Êxodo, 23:16), comemora as cabanas em que viveram os israelitas durante sua permanência no deserto (Levitico, 23:42 e seguinte). Os acontecimentos assinalados da época histórica, foram para Israel mais significativos, espiritualmente, do que a repetição do processo do ciclo da natureza, mesmo quando dele dependesse sua subsistência física. Enquanto as divindades dos outros povos estavam associados a lugares e coisas, o Deus de Israel era o Deus dos acontecimentos, o Redentor dos escravos, o que havia revelado a Toráh, manifestando-se nos acontecimentos históricos mais do que em objetos ou lugares. Assim foi como nasceu a fé no incorpóreo, no inimaginável.
O judaísmo é a religião do tempo que aspira à santificação do tempo. A diferença do homem mentalmente dominado pelo espaço, para quem o tempo é invariável, homogêneo, para quem todas as horas são iguais, como conchas vazias na sua carência de qualidade, a Bíblia percebe o caráter distintivo do tempo. Não há duas horas idênticas, cada uma é única e especial em um dado momento, exclusiva e infinitamente preciosa.
O judaísmo nos ensina a mantermos a santidade no tempo, a sentirmo-nos ligados aos acontecimentos sagrados e a aprender a consagrar os santuários que emergem do grandioso fluir do ano. Os Shabatot, são nossas grandes catedrais e nosso Sancta Sanctorum é um altar que nem os romanos nem os germanos puderam destruir, um altar que nem a apostasia pode macular: o Dia do Perdão. Segundo os rabinos da antigüidade, não é a observância do Dia do Perdão, mas sim o dia em si mesmo, a “essência do Dia”, que com o arrependimento do homem expia os pecados dele.
O ritual judaico poderia ser descrito como a arte das formas simbólicas no tempo, como a arquitetura do tempo. A maior parte de suas observâncias, tais como o Shabat, a Lua Nova, as festividades, o ano Sabático e o do Jubileu, baseiam-se numa determinada hora do dia ou estação do ano. Assim, por exemplo, é a noite, a manhã ou a tarde que nos trazem o chamado à oração. Os temas principais da fé residem no reino do tempo: recordamos o dia do Êxodo do Egito, o dia em que Israel ergueu-se no Sinai e depositamos nossa esperança messiânica na expectativa de um dia, no fim dos dias.
Numa obra de arte de composição harmoniosa, não se introduz uma idéia de importância relevante ao azar, mas sim a apresenta, tal como um rei em uma cerimônia oficial, no momento e na maneira que destacará sua autoridade de primazia. As palavras são empregadas na Bíblia com muito cuidado, em especial aquelas que, a maneira de colunas de fogo, marcam o caminho do vasto sistema do significado do mundo bíblico.
Uma das palavras mais ilustres da Bíblia é a palavra “Kadosh”, sagrado, palavra mais representativa que qualquer outra do mistério e majestade do divino. Mas qual foi o primeiro objeto sagrado na história do mundo? Uma montanha? Um altar?
A ilustre palavra kadosh é verdadeiramente utilizada pela primeira vez em uma única ocasião: no Libro do Gênesis, no final da história da criação. Quanto extremadamente significativo é o feito de que aplique-a ao tempo: “E bendisse Deus o sétimo dia e santificou-o”. Não há referência alguma no registro da criação a nenhum objeto no espaço dotado com o atributo de santidade.
Este é um desvio radical do pensamento religioso corrente. O espírito místico talvez esperasse que Deus, depois de estabelecer o céu e a terra, criaria um lugar sagrado, uma montanha ou uma fonte, onde deveria fundar-se um santuário. Não obstante, parece que na Bíblia, a santidade no tempo, o Shabat, precede a todos os demais.
No princípio da história havia uma só santidade no mundo, a santidade no tempo. Quando a palavra de Deus ia ser expressada no Sinai, proclamou-se uma chamada de santidade para o homem: “Sereis para mim um povo sagrado”. Somente depois que o povo sucumbiu à tentação de render culto a uma coisa, o bezerro de ouro, foi ordenada a construção de um Tabernáculo, da santidade no espaço. A santidade no tempo era o princípio, seguida pela santidade do homem, e em último lugar, a santidade no espaço. O tempo foi consagrado por Deus; o espaço, o Tabernáculo, foi consagrado por Moisés.
Enquanto as festividades celebram acontecimentos ocorridos no tempo, a data do mês marcada no calendário a cada festividade é determinada pela vida da natureza. A Páscoa e a Festa das Cabanas, por exemplo, coincidem com a lua cheia, e a data de todas as festividades é um dia no mês e o mês é um reflexo do que se repete periodicamente no reino da natureza, posto que o mês judaico começa com a lua cheia, com o reaparecimento do crescente lunar no céu vespertino. O Shabat, ao contrário, é inteiramente independente do mês e não tem relação com a lua. Sua data não é determinada por nenhum acontecimento da natureza, como a lua nova, mas pelo ato da criação. Assim sendo, a essência do Shabat é absolutamente independente do mundo do espaço.
O significado do Shabat consiste mais na celebração do tempo do que na do espaço. Durante sete dias da semana, vivemos submetidos à tirania das coisas do espaço, no Shabat tratamos de nos por em sintonia com a santidade no tempo. É o dia em que somos chamados a participar do que há de eterno no tempo, a passar dos resultados da criação ao mistério da criação, do mundo da criação à criação do mundo.

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