domingo, 27 de março de 2011

Qual o propósito da existência?

por Tzvi Freeman
 



   
  A maioria de nós se pergunta "por que estou aqui?", "Por que este universo inteiro (aparentemente) está aqui?" ou "Qual o propósito?"

A resposta breve:
O universo não precisa estar aqui. Não há razão para que você, ou eu ou eles, ou qualquer coisa, tenhamos de estar aqui. A Realidade Suprema (i.e., D’us ) não tem necessidade de que nada exista – como explica Maimônides no início de sua obra Fundações da Torá.

Mas quando D’us fez tudo existir, Ele o fez com um desejo a ser encontrado dentro de Sua criação e Ele investiu todo Seu Ser naquele desejo. Aquele desejo é um elemento essencial da realidade. Chame-o de propósito. Ele se desenrola através da história e por fim floresce abertamente.

Explicar aquele propósito exige um contexto, o que equivale a dizer que precisamos de uma resposta mais longa.

A resposta mais longa:
Quem levantou este problema, afinal de contas?

Contrário ao equívoco popular, esta não é uma pergunta feita por todas as pessoas pensantes no decorrer dos tempos. Pois, embora você possa não perceber, sua pergunta passa por um conjunto inteiro de pressuposições. O próprio fato de que esta dúvida o incomoda significa que você tem – talvez inconscientemente – interiorizado a opinião da Torá sobre a realidade. Ou seja, que o mundo foi trazido à vida por um Criador.

Porque se o mundo não foi criado, se está "só aqui," então para que perguntar sobre propósito? Como disse um dos grandes do Budismo moderno: "Não vejo propósito algum em todo esse cosmos." Por que deveria ele? As coisas que "só estão aqui" não precisam de um propósito.

Mas a Torá nos diz que o universo foi criado. O tempo tem um início. Se é assim, a noção de propósito tem significado: Por que as coisas começaram? Para que existir alguma coisa e não apenas deixar o nada em paz?

Em segundo lugar, você está pressupondo que há uma consciência por trás da criação. Consciência significa "um processo decisivo." As coisas não acontecem simplesmente por uma cadeia de causalidade linear – A, portanto B; B, portanto C; até o infinito. Também não ocorrem "por acaso" (seja lá o que isso signifique). Há um projeto por trás do cosmos e aquele projeto não é inevitável. Novamente, esta é a postura da Torá: "No início D’us criou" – e não, "No início, as coisas simplesmente aconteceram."


Há um projeto por trás do cosmos e aquele projeto não é inevitável. Novamente, esta é a postura da Torá: "No início D’us criou" – e não, "No início, as coisas simplesmente aconteceram."

Como um aparte, nossas observações hoje em dia também apoiam isso. A estrutura do universo está aberta para nós como nunca antes, e, vejam, toda a evidência aponta para um universo proposital. Nas palavras de Paul Davies, um dos melhores expositores daquilo que está sendo chamado, O Modelo Antrópico do Universo: "…há uma inacreditável delicadeza no equilíbrio entre gravidade e eletromagnetismo dentro de uma estrela. Cálculos demonstram que alterações na força de qualquer uma delas apenas por uma parte em 104 seria uma catástrofe para estrelas como o sol… A pura improbabilidade de que tais ditosas coincidências pudessem ser o resultado de uma série de acidentes excepcionalmente felizes tem estimulado muitos cientistas a concordar com Hoyle, de que 'o universo é uma obra planejada'… Se o universo tivesse sido criado com leis ligeiramente diferentes, não somente nós (ou qualquer um) não estaríamos aqui para ver, como é duvidoso que houvesse qualquer estrutura complexa."

Outra delícia vinda da pura física moderna: o físico Brandon Carter registra que a velocidade da luz, multiplicada pela constante de Planck, e dividida pelo quadrado da carga do elétron, é aproximadamente igual a 137. Carter afirma que se este coeficiente fosse só um pouquinho maior que isso, então todas as estrelas seriam gigantes azuis e não haveria nenhum planeta, muito menos seres vivos. Se fosse um pouquinho menor, todas as estrelas seriam anões vermelhos e portanto os planetas orbitando ao redor delas seriam frios demais para permitir qualquer tipo de organismo. A velocidade da luz, aparentemente, foi fixada no início para o bem de todo o show.

Há uma porção destas iguarias. A maneira única pela qual a água se expande ao congelar; as fantásticas coincidências que permitem a nosso planeta ter seu sistema mágico, protetor, distribuindo o calor e a umidade que dão a vida, chamado atmosfera; a precisão da órbita da terra e a distância do sol; a proporção de água para terra seca na superfície – são coincidências demais para deixar o moderno deus do acaso ter uma chance de credibilidade. Um Criador consciencioso com um projeto em mente parece uma hipótese muito mais elegante. A pergunta: "Qual o propósito deste projeto?" pode ser estruturada em outras palavras: "Já podemos ver o projeto no espaço – podemos espreitar o projeto no tempo?"

Mas agora, voltemos ao assunto do contexto:

Qual o tamanho do problema?

A Torá cria o problema do propósito, e a Torá faz o problema quase impossível de resolver. Por quê? Porque a Torá alega que D’us , o Criador de tudo isso, é perfeito. Perfeito significa "não ter nada faltando". Eterno Verão Polinésio. Sem defeitos. Nenhuma necessidade. Tudo está lá. Não apenas tudo que podemos imaginar está no supremo estado de perfeição – suprema sabedoria, supremo conhecimento, suprema criatividade, suprema beleza – como também aquilo que não podemos imaginar, pois não é parte de nosso mundo.

O propósito, por outro lado, implica uma deficiência ansiando por compensação, i.e., "Eu não tenho isso – como posso consegui-lo?" Preciso de alimento – eu como. Preciso de abrigo – construo uma casa. Preciso de amor – inicio um relacionamento. Portanto, relacionamentos humanos, comer e construir, todos esses têm um propósito.

D’us não está faminto. Ele não precisa Se preocupar sobre ficar molhado com a chuva. Ele pode passar muito bem sem iniciar um relacionamento. Ele é perfeito. É isso que faz dele D’us . Portanto, se D’us de nada precisa, por que Ele precisa de um mundo?

Razões razoáveis
Talvez D’us seja um artista. Os artistas precisam de sua arte? Bom material para a festa: Um artista plenamente realizado, apesar disso, produziria mais obras primas?

De forma interessante, o Zohar apresenta uma razão para a criação ao longo dessas linhas. Numa passagem freqüentemente citada, o Zohar (Parashat Bô, 42b) menciona que o mundo foi criado: "…para que houvesse criaturas que O conhecessem em toda medida pela qual Ele dirige Seu mundo, com bondade e com critério, segundo os atos de humanidade. Pois se Sua luz não se espalhasse a cada uma de Suas criações, como Ele seria conhecido? De que maneira se cumpriria 'Toda a terra está repleta de Sua glória'?"

Rabi Chaim Vital, importante porta-voz do Ari (mestre cabalista Rabi Isaac Luria), explica a profundidade dessa passagem. Sem o ato de criação, todas as infinitas perfeiçõs de D’us estariam em um estado de potencial (Etz Chaim, Shaar HaHakdamot, Hakdama 3). A Criação é como a expressão de um artista, fazendo o potencial se tornar realidade.

Certamente, esta razão é absolutamente verdadeira, pois é parte de nossa Sagrada Torá, que é toda verdade. Porém os mestres chassídicos insistem que este não pode ser o propósito supremo. Porque ainda coloca limitações humanas em um D’us ilimitado.

Como enfatiza Rabi Sholom Dovber de Lubavitch ("O Rashab"): "Se D’us é verdadeiramente perfeito em todos os sentidos, então Ele não sente falta nem da perfeição que vem com os potenciais sendo realizados." Ele é o artista e a arte num todo perfeito. Na clássica declaração do Rashab: Para um ser criado, o que é potencial não é verdadeiro. Mas Acima, isso não ocorre. O potencial não é falta de realização. O potencial e o verdadeiro existem como um. (Sefer Hamaamarim 5666; veja Likutei Sichot do Rebe, vol. VI, pág. 18-25).


O que ocorre é que D’us nem precisa ser um artista – seja o que for que a expressão artística pudesse Lhe dar. Ele já é sem precisar fazer nada. Na linguagem da Cabalá, o Infinito tem Luz Infinita, que manifesta todas as perfeições. Portanto, que necessidade há de um mundo?

Mais argumentação razoável
Rabi Chaim Vital apresenta uma outra razão: "Quando Lhe deu vontade, Bendito seja Seu Nome, de criar o mundo para fazer o bem a Suas criaturas, para que elas pudessem reconhecer Sua grandeza e mérito de ser um veículo para o que está acima, conectar-se com Ele, Bendito seja." (Eitz Chaim, Shaar HaKlalim).


D’us não está faminto. Ele não precisa Se preocupar sobre ficar molhado com a chuva. Ele pode passar muito bem sem iniciar um relacionamento. Ele é perfeito. É isso que faz dele D’us . Portanto, se D’us de nada precisa, por que Ele precisa de um mundo?

D’us é bom, portanto cria. Isso é levar as coisas um pouco mais além: ser bom é mais que auto-expressão, mais que ser um artista. Tanto o artista quanto o filantropo doam. Mas enquanto o artista é impulsionado pela ânsia de mostrar seu talento, o filantropo é impulsionado pelas necessidades dos outros. Para o artista, a platéia não tem valor intrínseco, que não seja o de vitrine para sua arte. O filantropo, porém, está preocupado com mais que simplesmente dar – está preocupado de que alguém esteja recebendo. Se está doando alimentos, está preocupado de que as pessoas não passem mais fome. Se está financiando a educação, preocupa-se com que os estudantes não sejam mais ignorantes. O mundo pessoal daquele que recebe é de suma importância para ele.

Esta razão evita a cilada da razão anterior: Não adianta nada se D’us disser: "Se houvesse seres criados, Eu seria bom para eles." Isso precisa realmente acontecer, eles têm de estar realmente lá e receber a bondade. É isso que é ser bom. Portanto, um mundo passou a existir por implicação da absoluta bondade de D’us . Mais uma vez, na linguagem da Cabalá (porque é uma linguagem muito elegante para discutir estes assuntos), a Luz Infinita não é suficiente – deve haver recipientes para absorver aquela luz e reagir a ela, i.e., um mundo.

Toda a luta e tribulação da humanidade pode ser explicada desta forma: Por que temos livre arbítrio? Por que devemos andar às cegas no escuro? Por que todo este conflito? Tudo porque D’us é bom e nos deseja o bem supremo. "Pão grátis" – dizem os Sábios – é o "pão da vergonha." Se você deseja realmente doar aos outros, dê-lhes a oportunidade de ganhar o presente. Este é o pão dignificado. Por isso D’us permite que lutemos, para que possamos ter um senso de propriedade com os frutos de nossa labuta.

Problemas maiores
Sim, mas…
A verdade é que ainda não mostramos metade do problema. Veja bem, o nosso não é o único mundo. A Torá fala sobre anjos e almas. Os anjos aparecem do outro mundo para falar com Avraham, Lot, Hagar, Yossef, e até para lutar com Yaacov. Então não se trata de "D’us está aqui e aqui está nosso mundo." Há estágios neste ínterim.

Mesmo o melhor dos mundos é um desapontamento para um D’us perfeito. A criatividade, quando você é perfeito, não significa fazer mais – significa fazer menos. Como diriam os cabalistas, D’us cria mais com sombras que com a luz.

É um processo de atrito: Ele começa com luz infinita. Depois, cria um estado de consciência que de certa forma está vazio de Sua presença. Depois Ele desenha naquele vazio uma sugestão da infinita luz, para dar àquela consciência forma e vida. Este é um mundo. Ele repete o processo, criando novamente um vácuo, depois o preenche com uma alusão infinitesimal de luz do mundo anterior. Outro mundo. O processo é chamado tzimtzum e continua através de infinitas etapas, até que chega a etapa mais inferior possível, i.e., você não vai gostar disso… nosso mundo!

Por que nosso mundo é o mais inferior possível? Porque todo o conceito de nosso mundo é simplesmente ser um mundo. Parecer inteiramente auto-contido. Como se estivesse "simplesmente aqui" (como afirmou aquele budista).

Olhe para fora. Talvez você veja uma árvore. O que diz a árvore? A menos que você seja um daqueles videntes que passam a tarde conversando com árvores, ela diz somente uma coisa: "Aqui estou. Aqui eu estava. Simplesmente estou aqui." Certo, seres humanos que utilizem suas mentes lerão beleza e significado naquela árvore. Mas aquilo tem a ver com a natureza espiritual inerente do ser humano. A árvore, por si própria, como tudo no mundo terreno, tem somente uma coisa a dizer: "Estou aqui." De fato, é isso que mesmo nós seres humanos chamamos de "realidade." Se pensarmos sobre isso, a vida humana é um exemplo ainda melhor daquilo que estou falando. Mais que a árvore. Ou mesmo uma rocha. Porque seres humanos são a última palavra em "simplesmente ser."

Olhe pela janela e veja todos aqueles seres humanos atarefados. Veja como cada um cuida de seus assuntos com o mesmo ar de egocentrismo. Não é algo para se ficar constrangido – é assim que as coisas são. Podemos sentir as emoções do outro, podemos sentir o intelecto do outro, mas quando se trata do ego, para cada um de nós, há apenas um ego em todo o cosmos, e este é o nosso. Seis bilhões de "vocês", "eles" e "elas". E somente um "eu."

O filósofo da Renascença, Rabi Judah Loewe (o Maharal de Praga) enfatiza isso (em seu comentário sobre Ética dos Pais 3:2): Todo ser humano – o primeiro homem, a criança, o sujeito caído na sarjeta, o mais poderoso ditador da História – todos eles compartilham esta percepção: "O universo gira ao meu redor." Sim, podemos ver um pouco além disso ou pelo menos escondê-lo sob o verniz da etiqueta social. Mas com a mesma certeza de que há ossos em nosso corpo, aquele ego estará sempre no âmago daquilo que fizermos. É o fator que define nosso mundo.

Se nossa janela se abrisse a um mundo mais elevado, as coisas não se pareceriam assim. Num mundo mais elevado, aquilo que você vê como árvore seria um anjo. "Anjo" – malach em hebraico – significa mensageiro. Um mensageiro dizendo: "Sou uma criação. Estou dizendo a você alguma coisa sobre como eu fui criado e o que me dá vida." Lá, as criações são mais como a luz refletindo sua fonte, ou informação comunicando de um transmissor mais elevado.

Mas em nosso mundo, parte alguma dessa mensagem alcança bom êxito. Com toda a codificação, compressão, filtragem e distorção ao longo do caminho, termina em algo ilegível e adulterado. O que resulta em egos. Incluindo os egos que negam completamente terem um Criador. Alguns até acreditam que eles mesmos são D’us , tendo criado tudo que existe neles próprios. (Você provavelmente já encontrou alguns deles – mais comumente vistos nas ruas da cidade entre 5 e 6 horas da tarde).


Portanto, como comenta o Rashab, a razão de Rabi Chaim Vital é um bom motivo para um mundo muito mais elevado que o nosso. Como na primeira emanação de um mundo. Mas então, por que continuar a corrente de ocultação e distorção para chegar ao nosso? Para ser bom e agradável, Ele teve realmente de criar um local que se tornasse uma confusão tão obscura e horrível? Ele precisa criar uma realidade que afirma ser tudo que há? Ele precisa criar egos? Criar algumas emanações básicas, ser bom para elas e parar por aí!

O verdadeiro problema

Tudo isso, sem mencionar o mais fundamental dos argumentos: Quem decidiu que ser bom com o próximo é uma boa coisa? Quem criou "bondade" e suas definições? Ele! Juntamente com todas as regras da lógica e da racionalidade. Portanto, voltamos ao ponto de partida: há um motivo razoável para a lógica e racionalidade e bondade e recipientes da Infinita Luz ou para qualquer outra coisa existirem?

Maimônides, em seu Guia para os Perplexos, responde um firme não. Por todos os motivos declarados acima e ainda mais. Não há razão. Ponto final. Ele não precisa de nosso mundo. Ele não precisa de nós. Mas há propósito. Absoluto propósito.

Agora, vamos à resposta realmente curta:

Como dissemos, D’us não tem necessidade ou "razão" para criar um mundo. Ele apenas o fez. Mas quando Ele o fez, foi com um propósito. Ele decidiu desejar ter dois opostos de uma vez:

Um mundo terreno, real…
…descobrindo seu Criador em todos seus aspectos.

Na linguagem do antigo Midrash:
"Ele desejou um mundo para Si Mesmo no mais inferior dos mundos "

Agora, a explicação:

"O mais inferior dos mundos." Como explicamos acima, é nosso mundo. Em termos de "clareza de sinal" – informação clara sobre sua fonte – você não pode ir mais baixo que isso e ainda ter algo existindo. É isso que o faz parecer tão real – a falta de aparente conexão com sua fonte. E é isso que o torna tão importante, a tal ponto que dentro dele está o propósito de todas as coisas.
Se isso parece contra-intuitivo, é porque é mesmo. Acostume-se a isso. A partir daqui, todas as nossas conclusões estarão baseadas neste princípio contra-intuitivo. Tudo bem que ele seja contra-intuitivo porque, como você se lembra, não é razoável. D’us não precisa de um lar. Ele está perfeitamente bem não fazendo nada. Ele apenas quis desejar isso. E Ele pode decidir desejar tudo aquilo que decidir desejar. Isso não significa – e é importante assinalar – que Ele realmente não deseja isso. Pelo contrário, você já teve de lidar com um desejo irracional? A razão tem seus limites, mas quando as coisas são decididas "só porque sim," você não está lidando mais com algo que possa alterar. Está lidando com a pessoa completa.
 

Ninguém abordou tanto este tema como o Lubavitcher Rebe, cuja abordagem a todo problema na Torá e no mundo é enquadrá-lo no contexto de sua dinâmica: A Essência de Todas as Coisas deseja uma morada dentro da mais concreta realidade.

Então aqui, também, D’us decide. "Isso o que escolho desejar, só porque assim decidi." E então, Ele está lá naquele desejo em toda Sua essência.

A criação contém apenas o mais ínfimo traço de um raio de um reflexo da luz do Criador. Somos todos uns nadas desnecessários. Mas em Seu desejo por Sua criação e esta realização, ali está Ele em Sua plenitude.

Elegância
Contra-intuitivo. Mas imaculadamente elegante. Antes de mais nada, nenhuma outra resposta expressa tão bem aquilo que os cabalistas chamam de "a simplicidade do infinito." O Infinito, bendito seja, está além da razão, além da busca pela perfeição. Todas essas nada mais são que ficções de seu próprio projeto. Colocar propositadamente o propósito no mais inferior dos mundos é uma expressão pungente deste ponto. De fato, é a suprema expressão do infinito Essencial.

Em segundo lugar, faz muito sentido dos padrões que vemos por todo o cosmos. E por todo o esquema do cosmos – a Torá. Em toda parte está o casamento dos opostos, este processo do mais elevado encontrando-se no inferior, o centro encontrando-se no periférico, o Único ser expresso nos muitos. Ninguém abordou tanto este tema como o Lubavitcher Rebe, cuja abordagem a todo problema na Torá e no mundo é enquadrá-lo no contexto de sua dinâmica: A Essência de Todas as Coisas deseja uma morada dentro da mais concreta realidade. A fusão dos opostos, também, é uma magnífica expressão daquela Essência que está além de todas as configurações binárias de sim e não, de ser e não ser.

Em terceiro lugar, embora esteja além da razão – pois é a razão que a razão passe a existir em primeiro lugar – ainda é algo com o qual podemos nos relacionar intimamente. Afinal, nós, também, desejamos uma morada. Nossa vida inteira e nossa ânsia irracional por vida é toda sobre este desejo de nos encontrar dentro de uma realidade concreta.

Quais são as implicações contra-intuitivas deste desejo contra-intuitivo de ter um lar nesta espelunca?

Por um lado, o universo metafísico acabou de ser virado de cabeça para baixo. Os anjos e os mundos mais elevados giram ao redor da terra. Eles estão sujeitos a nós aqui. Como nos diz o Midrash (Cântico dos Cânticos), quando a hoste celestial acima deseja saber quando é hora de entoar as canções do festival da Luz Nova, eles devem descer aqui para descobrir o que decidimos.

Mishná diz: "Conheça aquilo que está acima de você" (da mah l'maalah mimach) e o Maguid de Mezeritch traduz: "Saiba que tudo que está acima, vem de você." Tanto quanto eles descem o olhar para nós, todos aqueles seres espirituais dependem de nós para seu próprio sustento e itinerário cotidiano. Por outro lado, esqueça a escalada. Entrar no paraíso pode ser mais arrebatadoramente refrescante que uma Pepsi, mas é apenas um meio para um fim. O trabalho da humanidade não é ser cosmonautas espirituais, mas mineiros cósmicos, sondando os céus em busca da inspiração para prosseguir sua obra aqui em baixo. E qual é aquela obra em baixo? Arar os campos da vida terrena para que ela possa absorver a chuva vinda do alto, plantar e ajuntar as sementes dos atos celestiais feitos aqui na terra, construir e sustentar um santuário para o Mais Alto de todos os Altos aqui em baixo no mais inferior dos inferiores. Em outras palavras, estudar Torá, cumprir mitsvot e suportar todos os desafios até aí.

Eis por que, segundo Nachmânides em sua obra Shaar Hagmul, o supremo estado da grande jornada humana não é como almas no céu, mas como almas em corpos. Ao final dos dias, escreve ele, todas as almas retornarão a seus respectivos corpos e ali permanecerão para a felicidade eterna.

Revelação concreta
E uma outra coisa: construir uma morada num mundo inferior não significa que este mundo agora torna-se etéreo e angélico. Já existem suficientes mundos angélicos e etéreos. Não, ele tem de permanecer tão concreto, mundano e absoluto quanto foi criado. O único ajuste é que esta mesma mundanidade será percebida como Divina.

Eis por que a morada não pode vir do alto – construída por anjos ou mesmo pessoas que nada têm a ver com o mundo rela. Nenhuma mercadoria pré-fabricada. Se você deseja uma casa na Costa Rica, isso significa uma casa na Costa Rica construída por costarriquenhos com materiais da Costa Rica. O mesmo aqui – e somos os nativos. Nós, os egocêntricos, materialistas, terrenos aborígenes.

Tome como exemplo aquele egocentrismo com o qual constrangemos a todos no início deste artigo, aquele profundo sentimento que todos nós temos de que "Eu sou mais eu." Isso, por si mesmo, é a maior de todas as revelações, algo que os anjos jamais poderiam tocar. Afinal, de onde vem esta idéia? Como D’us criou uma aparição assim?

A resposta é que o Criador pode criar algo assim, porque Ele Próprio é exatamente assim: O Supremo Ego. Ele é o Centro de Todas as Coisas. Ele é Tudo Que é – pra valer. E assim, quando Ele sopra de Si Mesmo em uma criatura feita de barro terreno, aquela criatura sente-se exatamente da mesma maneira: Ego. O supremo centro de todas as coisas.

Esta é também a origem daquele senso de estar "simplesmente aqui." Como pode uma criação parecer estar "simplesmente aqui," como se sempre estivesse? Só porque é a suprema criação de um Criador que realmente está Simplesmente Aqui. Na linguagem de Rabi Schneur Zalman de Liadi ("O Alter Rebe") em um de seus últimos escritos:

"A Fonte de todas as emanações, Sua existência é de Seu próprio ser e não o efeito de qualquer causa que O tenha precedido. E portanto, somente Ele tem a capacidade de criar algo a partir do nada absoluto, sem nenhum precedente ou causa para sua existência…" (Tanya, Igueret HaKodesh 20).

Rabi Schneur Zalman prossegue descrevendo como a suprema expressão disso está na terra física sobre a qual caminhamos. E é por isso que ela se parece da maneira que se parece: Porque é um reflexo da suprema realidade.

Acontece que este mundo inferior e egocêntrico tem algo que nenhum mundo mais elevado pode oferecer: A Essência. Além disso: Não somente é o desejo de D’us por uma morada dirigido a este nosso mundo – como é a única propriedade apropriada para tal zoneamento. Porque a Essência simplesmente não pode ser expressa em nenhum outro lugar a não ser dentro de um mundo terreno, concreto e egocêntrico. Como está escrito no antigo Livro da Formação: "O início de todas as coisas está embebido em seu final."

Uma "morada no mundo inferior," então, não significa a aniquilação do ego e uma realidade mais obscura. Significa simplesmente que estas coisas serão avaliadas por aquilo que realmente são: As supremas formas da expressão Divina.

Aplicação Prática
Com toda esta contra-intuição, uma aplicação prática é exigida:

Digamos que alguém está para fazer uma refeição. A sabedoria comum colocaria todas as posturas possíveis a este exercício entre dois pólos:

A postura insensata, egocêntrica: "Estou faminto. Se estou faminto, eu como. Esta comida é o que gosto. Eu como aquilo que gosto. Por quê? Porque quando estou com fome como a comida que gosto."

A postura esclarecida, abnegada. "Estou faminto, mas isso não é importante. Nem ao menos percebo que estou faminto, porque estou tão envolvido em assuntos metafísicos mais elevados – o que é a comida, afinal? O que é a fome? O que é um corpo? O que sou eu? Porém, como D’us me ordenou sustentar este corpo e isso é feito através do alimento, aceitarei uma pequena porção de
comida para cumprir minha obrigação."

Qual desses cumpre o propósito do Criador na criação?

A resposta, evidentemente, é "nenhum deles." A primeira postura tem um quê de mundo real, mas nenhum senso de que ali more nada mais que o ego humano. A segunda tem uma Consciência Mais Elevada morando ali, mas nenhum mundo real. Porque o sujeito suprimiu aquela parte de si mesmo que faz dele um cidadão deste reino egocêntrico e inferior. Para atingir o mandato de uma "Morada Divina neste mundo inferior," deve haver um nexo destes dois pólos.

Portanto, tente uma terceira opção de tamanho, como aprendi do grande mestre dos mestres do pensamento Chabad, Rabi Yoel Kahn:

"Estou com fome. Quando estou faminto, eu como. Por quê? Porque isso é o que fazem seres terrenos como eu. E aqui está a comida que gosto de comer. Mas, espere. Tenho um propósito. Meu desejo por comida tem um propósito. Portanto, recitarei uma bênção sobre o alimento e o comerei com o estado de espírito apropriado de que estou comendo para cumprir meu propósito na vida e fazer muitas coisas boas. Agora vamos à refeição."

Nesta postura, há uma pessoa real, vivendo em um mundo real, mas fazendo algo Divino. E assim D’us diz: "Sim! É isso que Eu estava procurando!"

Contra-intuitivo. Mas factível.

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