quinta-feira, 3 de março de 2011

Um judeu chamado Jesus, uma leitura do Evangelho à luz da Torá

Marie Vidal, cristã católica e biblista, relê de forma inusitada em Um judeu chamado Jesus a encarnação judaica e a judeidade Jesus à luz da Torá. Não basta só acreditar na afirmação aceita universalmente: “Jesus era judeu e permaneceu sempre judeu”, é preciso ir mais além. E é o que o que faz Marie Vidal ao propor uma releitura atenta de Jesus a partir da literatura oral e escrita do judaísmo, sobretudo do Talmude. A autora percorre o fascinante caminho da busca do sentido das palavras, das imagens e dos textos.

O objetivo da autora não é fazer apologia do cristianismo, mas possibilitar um diálogo entre judaísmo e cristianismo feito a partir da leitura de origem, o que, como a própria Marie Vidal diz: “suscitará no leitor a integridade e o respeito nas diversas culturas” (p.24). Não se trata, portanto, de levar o judeu a tornar-se cristão ou vice-versa. Judaísmo e cristianismos são dois caminhos afins, mas com incumbências divinas diferenciadas. Cada um deve seguir o seu caminho querido por Deus.

Respeitando a tradição bíblica judaica, Marie Vidal nos preparou um livro no esquema semítico da inclusão, ou seja, tendo o início e o fim iguais, o essencial a ser dito está colocado no centro da narração. Qual outra Torá, Um judeu chamado Jesus está dividido em cinco partes. O conjunto das partes é cuidadosamente sistematizado de modo a haver correspondência entre as partes 1 e 5, 2 e 4, colocando em evidência a parte 3.

Ademais, o livro tem 25 capítulos, sendo que o de número 13: “Nazaré” (no hebraico = “Aquela que guarda”) está colocado no centro para relembrar os 13 atributos judaicos de Deus e, o que é mais importante, mostrar que Nazaré vem o judeu Jesus, ao qual o leitor se aproxima e se afasta progressivamente. No final do livro, como apêndice, o leitor poderá encontrar um amplo glossário das palavras técnicas usadas pela autora.

Na primeira parte: “A Torá e as horas do dia” (p.29-58), a autora mostra a vida de um judeu (assim como também seria a de Jesus) seguidor da Torá no seu dia-a-dia, de hora em hora, enfim, no tempo cronológico pelo qual ele passa em vista do tempo cósmico. Assim como a Torá, o dia é dividido em cinco partes:

1 - Ao despertar, a bênção da manhã. Se o galo, um ser irracional, discerne com o seu canto a noite do dia, com mais vigor deverá fazê-lo o ser humano por ser inteligente o suficiente para despertar e escolher com sabedoria entre o bem e o mal. Por isso, reza-se a Benção da manhã, expressão de louvar a Deus, o Bendito, que concede esses dons ao ser humano.

2 - No segundo momento, as bem-aventuranças. Recitar as bem-aventuranças/maldições significa a cada dia assumir a responsabilidade de não oprimir ninguém e criar relações de fraternidade. Nisso consiste o encontrar a felicidade. Para viver as bem-aventuranças são necessários os pés calcados nas relações humanas, os ouvidos atentos à Palavra e a montanha, símbolo do desejo de renascer em Deus (p.38-39).

3 – No terceiro momento, o meio-dia. Momento da luz plena e, portanto, hora de mostrar discernimento e inteligência Hora da refeição, da hospitalidade e da conviviabilidade, tempo de alimentar para manter a saúde e receber forças “d’Aquele” que ‘cria o fruto da vinha e faz brotar o pão da terra’ (p.41). A bênção antes da refeição relembra ao judeu que tudo vem de Deus e que ele não pode roubar o que não lhe pertence.

4 – No quarto momento, as três da tarde. Hora de repouso e reflexão. O retorno a si faz com que o crente se lembre do compromisso assumido na oração da manhã. É hora de decisão e de uma nova orientação.

5 – No quinto momento, a chegada da noite. Hora de vigília, dor e libertação. As lágrimas caem e fecundam a terra em mais noite, a espera de um novo dia.

Na segunda parte: “A identidade judaica” (p.59-96), Marie Vidal elenca cinco Palavras fundamentais que fazem viver cristãos e judeus, isto é, que lhes conferem identidade, a saber:

1 – “Quem irá remover a pedra?" Essa Palavra une o evento da ressurreição de Cristo ao Patriarca Jacó, o qual reuniu força suficiente para rolar uma grande pedra da boca de um poço. Pedra essa que necessitaria muitos pastores juntos para rolá-la. Um fato se liga ao outro através da memória. Os dois são da mesma magnitude e ambos conferem identidade.

2 – “Amarás o próximo como a ti mesmo!” O judeu Paulo, seguindo os ensinamentos do mestre também judeu Jesus, evidencia para os seus seguidores a importância dessa Palavra (mandamento) que culmina no amor conjugal que irradia para o mundo.

3 – “Qual é o primeiro mandamento?” O primeiro mandamento refere-se ao “Crescei-vos e multiplicai-vos”, pois concretiza o amor de Deus para como o seu povo. Ele é constitutivo do povo de Israel e de seu percurso: de sua história, no sentido de partos e nascimentos (p.73). Nisso está o centro da identidade de Israel.

4 – “Diz somente uma palavra e ficarei curado!” Os primeiros cristãos ligaram essa Palavra à Eucaristia. Dois fatos merecem a nossa atenção. Primeiro, o hebraico ao usar o substantivo milah quer referir-se a circuncisão e palavra. Daí que circuncisão para o judeu é expressão do seu diálogo eterno com Deus. Segundo, essa mesma frase: “dizer uma palavra para ser curado”... foi dita pelo rei Abimelec ao perceber que toda a sua casa estava estéril com a presença de Sara (Ex 20,10-12). Assim, o repetir dessas palavras pelo oficial romano é sinal de releitura.

5 – “Nem um yod sequer desaparecerá da Torá.” O yod, menor letra do alfabeto hebraico é de suma importância para a compreensão judaica do tempo. Ele está unido à raiz dos verbos hebraicos quer estejam no passado, presente ou no futuro. Essencialmente o yod simboliza a esperança que ninguém poderá tirar do povo escolhido, do qual fala a Torá.

Na terceira parte: “O judeu Jesus de Nazaré” (p.97-143), a autora chega ao âmago de sua tese: Jesus é um judeu encarnado no meio de seu povo. Assim como o Senhor é um, Jesus e sua tradição são UM. Não dicotomia entre Jesus e o judeu Jesus. Ele está sempre atento à Torá e seus ensinamentos. Não é por menos que ele vem de Nazaré, em hebraico, “aquela que guarda”.

E os que guardam a Torá sempre vão colher bons frutos. O cristianismo criou raízes porque Jesus viveu plenamente a Aliança de Deus feita com o seu povo. E é nisso que os cristãos de ontem e de hoje devem se nutrir. Jesus, ao ensinar o Pai-nosso lembra a oração de Santificação do nome do Senhor” (Qadish). Encarnação, evangelização, Evangelho e Igreja primitiva passam pela particularidade hebraica, judaica e farisaica (p.127 e 142).

Na quarta parte: “A ética judaica” (p.145-177), Marie Vidal discorre, em sintonia com a segunda parte (a identidade judaica), sobre as cinco atitudes espirituais, de ética ou oração, comuns às comunidades judaica e cristã:

1 – ter conduta íntegra em relação ao outro;

2 – não procurar entre os mortos aquele que está vivo;

3 – passar sempre para a outra margem, isto é, estar sempre a caminho;

4 – estar sempre na dinâmica do Shemá (Ouve) Israel;

5 – estar sempre em ação, não ter onde reclinar a cabeça.

Essas atitudes foram vividas por Jesus. Nele somos chamados a acolher Israel que respondeu ao chamado de Deus na fiel escuta da Torá.

Na quinta parte: “A Torá e as etapas da vida” (p.179-203), a autora retoma o início do livro quando falou das cinco horas do dia, falando agora das cinco etapas da vida humana vivida pelo judeu Jesus encarnado, a saber:

1 - Juventude: realiza-se nessa fase, isto é, aos 12 anos, o Bar Mitswah (filho do mandamento). Com essa celebração a criança torna-se adulta.

2 - As doze horas do dia: está relacionada com o dia e convoca-nos à eternidade.

3 - A idade adulta: nessa fase o judeu já pode alimentar os filhos, a família e a sociedade. Nessa fase ele é chamado a viver com vigilância. O importante é o que sai do coração (lugar da inteligência e decisão) e assumir a responsabilidade de si mesmo (tomar - lavar - as mãos).

4 - Nascido de uma mulher: essa expressão evoca, simultaneamente, o nascimento e a morte. Entre esses dois momentos, desenrola-se o tempo da encarnação que cada um irá percorrer a partir do tempo estável da eternidade de Deus (p.198). Ao morrer estamos livres da Torá.

5 - A figueira sem fruto: toda a vida é um chamado de Deus a dar fruto. Jesus convoca-nos a alimentar-nos da Torá e a dar bons frutos, assumindo nossa vida com responsabilidade diante de Deus e dos outros. Aquele que se recusa a dar frutos fez a opção livre pela maldição, esterilidade e morte. Não foi responsável.

O fascinante e inusitado caminho percorrido por Marie Vidal em Um judeu chamado Jesus nos leva a afirmar que esse livro é de suma importância para a leitura de origem na perspectiva do diálogo inter-religioso. Jesus à luz da Torá não é um outro Jesus, mas o mesmo, compreendido de forma profunda, atraente e sem preconceitos antijudaicos.

A pesquisa recente sobre a encarnação judaica de Jesus tem muito a agradecer essa contribuição valiosa de Marie Vidal. Qual cristão não sentirá, ao ler Um Judeu chamado Jesus, aflorar as raízes de sua fé? E qual não será a sua surpresa ao redescobrir o seu parentesco de primeiro grau com o povo da Torá?

Vale a pena ler e reler as páginas desse livro e saborear o seu centro. Tornar-se uma nova “Nazaré” que guarda e anuncia o mistério profundo da encarnação de Deus no povo da Torá, sem preconceitos e prejuízos para judeus e cristãos.

Resenha publicada na Revista Ribla, 40, Petrópolis: Vozes
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VIDAL, Marie. Um judeu chamado Jesus, uma leitura do evangelho à luz da Torá. Trad. do francês, Petrópolis: Editora Vozes, 2000, 236 p.

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