sábado, 12 de março de 2011

A vocação profética na Bíblia


Falar de vocação profética na Bíblia é falar da experiência de Deus que homens e mulheres realizaram em suas vidas. Os profetas e profetisas, ao vivenciarem sua vocação, procuram responder ao chamado de Deus. Primeiro, eles tiveram que mergulhar neste mistério profundo, Deus, o Inexplicável, o absoluto. Como a Bíblia registrou, de modo oficial, a história da vocação destes nossos profetas? É o que procuraremos delinear nas páginas seguintes, procurando os elementos essenciais da vocação de alguns deles.
1 - Moisés: vocação de um profeta e libertador

Moisés é recordado na profecia de Oséias como o profeta que Deus suscitou para libertar Israel do jugo do Egito e guardá-lo como povo de Deus (Os 12, 14). Moisés, consciente de sua missão profética, diz ao povo que Deus vai suscitar um profeta como ele (Dt 18,15).

A trajetória da vocação de Moisés aparece em Ex 3, 1-15; 4, 1-17; 6, 2-13: 6, 28-30; 7,1-7. Deus chama Moisés numa chama de fogo, do meio de uma sarça que ardia, mas não se consumia. Deus o chama pelo nome: “Moisés, Moisés”. E ele responde prontamente: “Eis-me aqui.” Deus se apresenta e convoca Moisés para voltar ao Egito e libertar o seu povo. Moisés tinha consciência disso. Do Egito ele havia fugido.
A vocação de Moisés consiste em tomar consciência da situação de injustiça. Ele sabe que Deus o chama, mas tem medo. Moisés apela para vários argumentos, dentre eles, o não saber falar, isto é, não ter a Palavra de profeta. O medo de Moisés é tamanho, que ele nega dizendo: “Quem sou eu para ir ao Faraó e fazer sair do Egito os filhos de Israel” (Ex 3, 11). Deus lhe revela e lhe garante que estará junto dele todo o tempo. Moisés resiste e pede um intérprete. Deus aceita o pedido e coloca o irmão Aarão para ajudá-lo. Na verdade, nisto está a justificativa da necessidade do sacerdócio representado na pessoa de Aarão para a realização da vocação de Moisés. Moisés recebe o poder de falar com o Faraó, na pessoa de seu irmão Aarão. Moisés, munido de todas estas garantias parte para a sua missão. A sua vocação é assumida com destreza. Ele se torna libertador dos oprimidos, os pobres de Deus. Moisés vence o medo.
Os elementos essenciais da vocação de Moisés são: tomada de consciência da realidade, medo, rejeição do chamado, autoridade divina para denunciar a injustiça, mediador entre Deus e o seu povo, libertador e certeza que Deus Libertador caminha com ele.

2 – Elias: o profeta do povo
O primeiro livro dos Reis, nos capítulos 18 e 19, narra a vocação de Elias. Ele é um profeta que deixa a corte para viver no meio do povo. Elias recebe a missão de Deus de denunciar as injustiças do rei Acab e constituir Jeú como novo rei de Israel.
A tradição em Israel guardou na memória o sonho: Elias vai voltar! O Primeiro Testamento encerra com as seguintes palavras de esperança: “Eis que vos enviarei Elias, o profeta, antes que chegue o Dia do Senhor, grande e terrível. Ele fará voltar o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos para os pais, para que eu não venha ferir a terra com anátema” (Mal 3, 23-24). Sobre Jesus, o povo pensava: não será ele Elias que voltou? (Mc 8, 28). Jesus garante aos discípulos que Elias já voltou, mas que não o reconheceram (Mt 17,11). Para manter vivo o desejo da volta de Elias, os judeus, na noite do jantar da ceia judaica, deixam uma cadeira de honra vazia e reservada para Elias. No final da celebração, as portas da casa são abertas, e o pai da família convoca Elias para entrar na sua casa e anunciar a vinda do Messias. Jesus, o messias, para os cristãos, morre invocando Elias (Mt 27,47.49). Assim como Elias, ele faz curas, milagres e multiplica pães...
Elias devolveu a esperança ao povo sofrido. Expandiu a fé em Deus. Nisto está a sua vocação de profeta homem de Deus. Os elementos essenciais da vocação de Elias são: falar em nome de Deus, denunciar as injustiças, agir politicamente na defesa dos pobres.

3 - Jeremias: escolhido para destruir, arrancar e plantar. Mas ele tem medo!
A vocação de Jeremias é descrita em um texto bíblico de bela construção literária, Jr 1,4-10. Deus se revela a Jeremias e lhe dá a missão de destruir, arrancar e plantar a justiça divina (Jr 1,10). Jeremias retruca dizendo que não sabe falar. “Ah! Senhor Deus, eis que eu não sei falar, porque ainda sou uma criança!” (Jr 1,6). E Deus mesmo lhe diz: “Não tenhas medo deles, para que eu não te aterrorize à vista deles” (Jr 1, 17). Antes mesmo de te formar no ventre materno, eu te conheci; antes que saísses do seio, eu te consagrei. Eu te constitui profeta para as nações” (Jr 1,5). Esta missão foi marcada por medo e crise da sedução.
Jeremias é um profeta medroso. Se o seu nascimento foi marcado pela alegria na casa paterna (Jr 20,15), ele, no entanto, quando já crescido amaldiçoa o dia do seu nascimento: “Maldito o dia em que nasci” (Jr 20,14). Jeremias demonstra claramente que não queria ter nascido. A sua mãe levou a culpa: “Minha mãe teria sido minha sepultura” (Jr 20,17). “Mãe, minha desgraça é a vida que a senhora me deu” (Jr 15,10).
A comunidade de Jeremias, ao contar a sua vocação, quis mostrar como Jeremias se parecia com o grande profeta Moisés. Este também teve medo, disse que não sabia falar, etc., mas foi um profeta.
Jeremias viveu na roça. Não se casou. Conhecedor do sofrimento de seu povo, Jeremias sabia que algo deveria ser feito, mas ele tinha medo. No ano 627 antes da Era Comum, no décimo terceiro ano do governo de Josias, Jeremias sente o chamado de Deus. O livro que leva o seu nome descreve os elementos essenciais desta vocação nos seguintes pontos:
1. Deus quando chama alguém é porque este já é íntimo seu. “Antes mesmo de te formar no ventre materno, eu te conheci; antes que saísses do seio, eu te consagrei” (Jr 1,1-5). Com estas palavras, Jeremias narra a sua experiência de Deus.
2. A missão profética e sua realização confirmam o chamado. Jeremias tem consciência que ele é um consagrado para a missão profética: “Eu te consagrei” (Jr 1,5b). Por isso, ele não sabe fazer outra coisa senão ser profeta.
3. O medo e outras limitações humanas são inerentes à vocação. Isto não é diferente com Jeremias, que, de tanto medo, apela para o não saber falar. “Eu sou criança” (Jr 1,6).
4. O profeta é porta-voz de Deus (Jr 1,7). Jeremias terá que falar em nome de Deus e em sintonia com o povo ao qual ele foi enviado por Deus. E Deus estará com ele sempre.
5. O profeta é abençoado por Deus. As palavras de Deus são colocadas em sua boca, de modo que ele fale em seu nome (Jr 1,10).
6. O profeta é seduzido por Deus. “Tu me seduziste, Senhor, e eu me deixei seduzir” (Jr 20,7). Estas palavras proferidas por Jeremias demonstram como ele compreendeu o mistério da vocação em sua vida. Deus mudou a vida de Jeremias.

4 – Conclusão

O estudo que fizemos sobre a vocação dos profetas na Bíblia nos evidencia algumas conclusões, tais como:

· A vocação de cada profeta é específica. Não podemos dizer que todo profeta ou profetisa foi chamado para simplesmente denunciar. Claro que este aspecto teve um papel fundamental na vida de cada profeta, mas cada profeta tem o seu contexto. Por isso, que muitos profetas chegam a mencionar o dia em que eles foram chamados (Zc 1,1; Ez 1,1-2).
· Na experiência vocacional de cada profeta, podemos destacar que ele tem em comum a certeza que Deus o chama para uma missão, que só ele poderá realizar. Por isso, ele terá que passar por uma mudança radical em sua vida. Terá que deixar a sua vida tranqüila no campo. O profeta torna-se um desinstalado por Deus. Ele sabe disso, pois, após o seu chamado, ele vive experiência profunda de Deus, o que provoca uma reviravolta na sua vida pessoal e familiar.
· Ser chamado por meio de uma voz, luz, toque, nuvem de incenso, sarça ardente, deserto, festa no Templo, são alguns dos modos encontrados pela comunidade do profeta para dizer que ele foi escolhido por Deus para exercer uma missão específica. Estes símbolos são também o meio encontrado para narrar a experiência do chamado.
· Em alguns casos de vocação profética, a escolha tem como objetivo dar continuidade à missão de seu antecessor. É o que ocorre, por exemplo, com Eliseu.
· O esquema literário das narrativas vocacionais se repete, em muitos casos, do seguinte modo: chamado, rejeição ao chamado, explicitação e aceitação da missão.
· O medo e a incerteza fazem parte da vocação de muitos profetas. Muitas apelam para o não saber falar, não saber comunicar, fator essencial na vida profética. Deus não aceita este argumento.
· O profeta, ao longo de sua caminhada, percebe que Deus o havia predestinado para esta missão (Is 44,2.24; Jr 1,4).
· A vocação das mulheres profetisas não é descrita na Bíblia.
· Jesus é a síntese da vocação profética do Primeiro Testamento, no seu serviço ao Reino em Lc 4, 14-22: remir os presos, recuperar a vista dos cegos, restituir a liberdade aos oprimidos e proclamar um ano de graça do Senhor.


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